Autoengano como atributo de felicidade



Nós humanos tendemos a crer naturalmente nas mais inusitadas e criativas possibilidades a respeito da vida, ao tomar como base, alguns dos tantos mistérios que envolvem ser o que/quem somos. Motivados por esses mistérios e a falta de respostas, nos orientamos por meio de uma visão distorcida da realidade, pela qual imaginamos encontraremos respostas para as inúmeras dúvidas em relação ao que supostamente existe além de nós e assim dar fim aos questionamentos.

Nossa vida é cercada de supostos mistérios sobrenaturais, sem qualquer embasamento real que os sustente, mas que em sua essência torna-se importante para preencher certas lacunas existenciais. Costumamos dar significado para eventos aleatórios, a fim de tentar explicar aquilo que não sabemos ou não temos como comprovar. E assim como nossos antepassados, pelo fato de não terem acesso ao conhecimento necessário a respeito dos eventos naturais ou mesmo casualidades que não possuem nenhum significado específico, seguimos o caminho do achismo e da especulação baseada em crença.

Pelo fato de nascermos em meio a um grupo social específico, somos moldados segundo regras, consideradas por esses grupos como princípios que norteiam o pensamento e o comportamento individual. Essas questões são comumente tidas como de valor irreparável e questionar tais regras é visto como uma afronta aos costumes locais. Esses valores são inquestionáveis pelo fato de ser transmitido como verdadeiros através de várias gerações, mesmo que não façam sentido do ponto de vista racional.

De desígnios divinos a tradições ancestrais e culturais, a maioria de nós traz consigo algum resquício das tradições passadas de uma geração para outra, como algo a ser perpetuado, ainda que não seja objeto de adoração, parte de um culto ou de uma doutrina propriamente dita. Esses valores são intrínsecos e qualquer possibilidade de mudança é vista com desprezo, mesmo que haja evidências suficientes para comprovar que tudo não passa de mero desejo de crer em algo inexistente e ilusório.

O natal e a páscoa são exemplos vivos de herança cultural baseada em rituais pagãos antigos, posteriormente adaptados para a realidade ocidental por meio do cristianismo. Qualquer tentativa de descaracterizar essas tradições, dará início a um conflito entre racionalidade e tradição, o que efetivamente não resultará em um consenso entre as partes envolvidas. 

A verdadeira história do natal

Embora talvez sejamos cognitivamente os únicos animais capazes de manifestar crenças, ainda há estudos e debates a respeito do que efetivamente consiste a crença e de que forma esse tipo de manifestação pode ocorrer em outras espécies de símios. Existem pesquisas que pontam traços comportamentais semelhantes ao que nós humanos chamamos de fé. Tal acontecimento foi registrado em um grupo de chimpanzés, que manifestam comportamento semelhante ao nosso, diante de uma árvore específica, dando aos pesquisadores uma ideia sobre como teria sido os primórdios da construção de crenças na espécie humana.

Chimpanzés podem ter inventado seu primeiro deus

Somos movidos pelo ímpeto da fé, o que nos move em direção às crenças, já que ainda vivemos à margem da dúvida e do questionamento a respeito do daquilo que é fato e o que é ou não ilusório. Nossas crenças são a base de um mecanismo de defesa, pelo qual nos apegamos emocionalmente a fim de suprir carências existenciais, motivadas pelo medo do fim de uma existência baseada em si, sem qualquer propósito ou recompensa pelos feitos ao longo da vida. O ser humano é dotado de esperança e como outras espécies animais, necessita de recompensa a fim de sentir-se valorizado ou motivado a seguir adiante, sem relutar.

O medo de aceitar que a vida em si não passa de uma linha temporal sem qualquer significado que não seja a perpetuação da própria espécie, nos leva a criar esses cenários imaginários nos quais somos recompensados pelos nossos feitos aqui na Terra. Intuímos situações com base em superstições, para assim criarmos histórias que serão levadas adiante e vistas como algo inquestionável e fruto do poder divino.

Com isso, desenvolvemos o artifício da convicção, pelo qual nos orientamos e compartilhamos ideais capazes de convencer outros indivíduos que estejam na busca por respostas aos mais profundos questionamentos existenciais. Existem ainda os que recorrem ao artifício da fé para atrair outros interessados, de modo a continuidade ao plano de unir forças em prol de uma convicção.

Ainda que ilusoriamente haja a crença em outra vida ou mesmo na salvação eterna - uma clara demonstração do desejo de perpetuação da própria existência - o homem defende crenças em nome da própria salvação e a possibilidade de encontrar assim algum sentido para a própria existência.

Vivemos à sombra da ilusória necessidade de crer em algo que sirva como alicerce para a autoafirmação, com o claro propósito de evitar o acovardamento diante da vida e das situações que fazem parte do cotidiano e nos põem a prova diariamente. É mais fácil crer em algo criado pela necessidade de dar significado e valor a vida, do que simplesmente aceitar que a vida é uma só e precisamos vivê-la da melhor forma possível.

Acreditamos em estranhas superstições a respeito da vida, como se nosso destino dependesse exclusivamente delas. Somo motivados por crenças a ponto de não conseguirmos pensar uma existência sem algum tipo de entidade ou força sobrenatural. E quando confrontados em relação a isso, entramos em negação, pois recusamos enxergar o óbvio, por acreditar naquilo que sempre nos pareceu mais cômodo e seguro, em vez de encarar que nossas crenças não passam de um ímpeto imaginário, motivado pelo desejo de algo melhor ou talvez mais fácil de ser assimilado.

Nos sujeitamos a essas crenças, pois é assim que nossa cultura foi criada e sustentada ao longo dos séculos. Somos criados a imagem e semelhança dos nossos antepassados, e deste modo doutrinados para sermos considerados "pessoas aceitáveis" em um determinado grupo social. Faz parte da nossa cultura ‘crer’ em algo ou alguém, pois negamos veementemente qualquer outra situação que não seja a cômoda desculpa do desígnio divino que está por trás da resignação ao invés da resiliência; da bruxaria por trás da falta de capacidade para assumir as próprias responsabilidades ou o olho gordo que oculta a incapacidade de alguém que em vez de empenhar-se na busca por aprimoramento, opta por culpar os outros pelo seu infortúnio e delegar ao divino toda e qualquer responsabilidade.

Não há nada de divino ou demoníaco no fato de alguém ter, ou não, sucesso na vida, pois isso está relacionado com outros aspectos, principalmente comportamentais, que ditam os rumos da nossa vida.

Fé é importante: ela é o mecanismo que nos move na direção certa, mas fazer uso deste artifício como muleta, pode e será a receita certa para a frustração, já que a fé por si só não muda nada em nossa vida. Precisamos aprender que a fé nos projeta rumo aquilo que é objeto de desejo, mas que se não formos firmes nas próprias convicções a respeito de saber o que queremos e por onde começar, de nada adiantará crer.

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